domingo, 15 de maio de 2011

Inimigo astuto

Enviado por Míriam Leitão – 15/05/2011

A inflação tem razões que o governo desconhece. Nos próximos meses as autoridades vão comemorar o bom resultado da taxa mensal. Ela vai cair, e o governo cantará vitória na sua briga de diagnósticos travada com os analistas. Mas o risco não diminuirá, porque a inflação em 12 meses em alta vai continuar elevando o grau de indexação da economia e há muitos riscos pela frente.

A taxa subiu porque era entressafra. Isso é apenas uma das causas. A safra agora derrubará o número nosso de cada mês comparado ao mês anterior. Em 12 meses, o índice vai caminhar para 7% e quando a taxa estiver no pico ocorrerão as grandes negociações salariais. Os empresários precisando de mão de obra qualificada devem ceder e depois repassar aos preços. O aperto do crédito feito até agora não foi suficiente, e o consumidor aceitará pagar mais porque está se endividando com facilidade. O maior risco virá no começo do ano que vem, quando entrar em vigor o salário mínimo com a nova fórmula de reajuste indexada ao crescimento de dois anos antes e a inflação do ano anterior.

Essa fórmula foi um erro que revelou o grau de desconhecimento que o atual governo tem da natureza complexa da inflação brasileira. O Plano Real conseguiu desindexar em grande parte a economia, mas permaneceram resquícios que ficam fortalecidos quando há um conjunto de ingredientes como o que o Brasil está vivendo neste momento: o governo gastou demais no ano passado e ainda não fez o ajuste, a demanda continua forte, o diagnóstico que o governo faz do problema é parcial, as declarações lembram tempos passados, preços como os de energia elétrica sobem conforme a inflação passada, os formadores de preços não sabem como será o amanhã. Em contexto assim, a tendência é cada agente econômico garantir que seu preço não perca da inflação. E há ainda o perigo do impacto do aumento do salário mínimo de 14% no início de 2012.

O Banco Central admite os problemas atuais, mas diz que no final do ano que vem o país estará com a inflação no centro da meta. Ainda não explicou como pulará o obstáculo criado pelo salário mínimo na fórmula superindexada pelo governo. O reajuste produzirá um choque de custos nas contas públicas e no setor de serviços, cuja taxa está há muito tempo acima de 8%.

No combustível, o governo escalou uma empresa pública para forçar um preço para baixo. Isso é mais um sinal que revela como se flerta atualmente com as velhas práticas de controle da inflação que pareciam enterradas após 1994. O álcool está em queda porque a safra começou a ser colhida e a cana, moída. Não precisava de mais uma demonstração de interferência estatal na economia de mercado, com o governo mandando a BR forçar a queda. A inflação de combustível está sendo tratada com instrumental velho: intervenção estatal, controle, subsídios. A escolha mostra que o governo não tem visão sistêmica do problema. A cotação do petróleo oscila, mas permanecerá, segundo a Agência Internacional de Energia, na faixa de US$ 110 o barril. O preço que a Petrobras fornece às distribuidoras é o mesmo que cobrava quando o petróleo estava em US$ 60. O congelamento é um subsídio e estímulo ao consumo de um produto que o Brasil está importando, e a estatal vive a estranha situação de pagar mais pela gasolina importada do que cobra das empresas que distribuem. E o governo já avisou que se precisar subsidiará mais ainda retirando o imposto dos combustíveis.

Com truques, intervenções, artificialismos e subsídios o governo tenta reduzir a inflação de combustíveis. Como ele é um preço importante nos índices, essa ação ajudará a baixar a taxa mensal, mas não impedirá que em 12 meses o índice continue a subir, porque no ano passado a inflação foi zero em junho, julho e agosto. Quando os números do ano passado saírem da conta e entrarem os de 2011 a taxa continuará na altura dos 7%.

A inflação se combate com coerência na política econômica, controle de gastos públicos, competição nos mercados e visão estratégica. Tudo isso está em falta.

O governo decidiu fechar o mercado de automóveis porque está em briga comercial com a Argentina. Isso recria a reserva de mercado para os produtores locais de automóveis. Como a importação estava crescendo a 40%, e no ano passado o déficit comercial do setor foi US$ 6 bilhões, parece a solução perfeita. O mercado fechado, a demanda aquecida, o crédito ainda farto aumentará a demanda por carros nacionais. Ainda mais porque as montadoras japonesas ainda enfrentam falta de peças. O cenário é perfeito para os metalúrgicos pedirem grandes aumentos de salários e as montadoras concordarem para repassar o custo das bondades ao consumidor. Uma velha coalizão inflacionária vai se formar com uma ajudinha do governo.

Os gastos públicos serão mais altos este ano do que em 2010, quando subiram de forma exorbitante por razões eleitorais. O governo pensa que engana quando corta no orçamento, mas se endivida para dar mais dinheiro ao BNDES. O dinheiro vira crédito barato para empresas escolhidas, mas não entra na conta do resultado primário nem na dívida líquida. Parece não existir, mas a economia não se deixa enganar.

Passei a maior parte dos meus mais de 30 anos de jornalismo econômico tentando entender a lógica dos vários tentáculos desse velho inimigo. Sei da astúcia da inflação brasileira em encontrar mecanismos de autoreprodução. Aprendi que a inflação tem razões múltiplas. Todas as causas têm que estar no campo de visão das autoridades. O maior risco é subestimar os riscos.

Corumbá